Chegou a hora de discutir a questão do serviço público de televisão (e rádio) numa perspetiva substancial e não apenas formal. Desse debate, essencial para a democracia, deveremos extrair o significado da exigência constitucional de serviço público nos nossos dias. O debate não pode ser substituído pelo mero apelo à intervenção do Tribunal Constitucional.
De resto, tal apelo é, por agora, extemporâneo. A intervenção do Tribunal Constitucional só se justificará se vier a ser aprovada uma lei que preveja a concessão do serviço público a privados. Nesse caso, em vez de promulgar o diploma, o Presidente da República poderá requerer a sua fiscalização preventiva. Mas também poderá exercer o direito de veto político.
Por certo, o serviço público de televisão só pode ter como meta contribuir para o aprofundamento de valores constitucionais. Nesta perspetiva, não poderemos deixar debaixo do tapete as questões que têm sido esquecidas: tem havido um serviço de televisão que respeite os exigentes parâmetros do interesse público? Que serviço desejamos para o futuro?
A liberdade de expressão do pensamento, o acesso democrático à arte e à ciência, a defesa da língua e da cultura portuguesas e uma informação isenta, que assegure o contraditório entre correntes de opinião, são valores constitucionais que o serviço público deve assegurar. Os atuais programas da televisão pública têm defendido esses valores?
O entretenimento, que em si não é incompatível com o serviço público, pode ter qualquer conteúdo e sobrepor-se aos programas de dimensão educativa ou cultural, a que só os canais por cabo dedicam espaço significativo? E o contraditório não terá de ser assegurado quanto aos comentadores que debitam as suas opiniões perante jornalistas passivos?
A questão que se coloca é se os privados, portugueses ou estrangeiros, sem responsabilidade política perante ninguém, podem satisfazer estas exigências. Mesmo que a lei preveja com minúcia as condições de uma concessão ou de uma privatização, a responsabilidade do governo pela qualidade do serviço público dilui-se e a voz dos cidadãos deixa de se fazer ouvir.
Quem, encarando a questão formalmente, não vir inconstitucionalidade alguma numa concessão a privados esquece que o problema diz respeito às condições políticas e materiais necessárias para efetivar o interesse público. O que está em causa é a "democracia do intelecto", de que falava sabiamente Carl Sagan num grande programa de televisão sobre a ciência.
Por:Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal, a quem, com a devida vénia, se agradece.Foi publicado no "Correio da Manhã".
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