domingo, 6 de maio de 2012

"Casas por dívidas", por:Fernanda Palma


Uma decisão recente do Tribunal de Portalegre indeferiu a pretensão de um banco quanto ao valor a atribuir a um imóvel, para determinar a quantia em dívida no âmbito de um empréstimo garantido por uma hipoteca. O banco queria considerar o valor resultante da avaliação que ele próprio tinha feito antes, aquando da concessão desse empréstimo (117 500,00 €).
Porém, invocando o ensino de Menezes Cordeiro acerca da boa-fé e fundamentando-se no abuso de direito e no enriquecimento sem causa, o Tribunal considerou que o valor relevante seria aquele pelo qual a mesma instituição de crédito adquiriu o imóvel hipotecado no âmbito da ação executiva (82 250,00 €). Desse modo, "fez diminuir" a dívida em 35 259,00 €.
A decisão, que pode ser lida no sítio da Associação Sindical dos Juízes na internet, assenta na reprovação social e moral – mas com relevância jurídica – que recai sobre quem assume comportamentos contraditórios ("venire contra factum propium"). Terá sido esse o caso do banco, que adquiriu o imóvel por um valor e se queria fazer pagar por outro valor superior.
Esta decisão pode ter um enorme impacto no nosso país, tendo em conta que 70% do endividamento privado se refere, segundo o Banco de Portugal, ao crédito à habitação. Nos últimos decénios, foi concedido crédito generalizado, de acordo com avaliações pouco rigorosas, e a entrega de imóveis à banca está a crescer com o endividamento das famílias.
Que valor terá esta decisão para os restantes tribunais? É verdade que nenhum outro tribunal está obrigado a seguir tal jurisprudência. Mas, perante decisões contraditórias, há recursos que podem conduzir, em última instância, a acórdãos de uniformização de jurisprudência do STJ. E tais acórdãos servem de critério orientador para os tribunais judiciais.
Por outro lado, argumentando o Tribunal de Portalegre com as figuras da boa-fé, do abuso de direito e do enriquecimento sem causa, é possível divisar, na sua decisão, um problema de desequilíbrio entre os direitos do devedor e do credor. Ora, tal problema ultrapassa já a mera interpretação dos princípios do Direito Civil e coloca uma questão de desigualdade.
A reconhecer-se a pertinência deste entendimento, estará aberto também o caminho para uma futura intervenção do Tribunal Constitucional. Para tal, bastará que seja suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, por violação do princípio da igualdade, perante uma decisão judicial contrária à proferida pelo Tribunal de Portalegre.
Por:Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal,com a devida vénia.Publicado no "Correio da Manhã".

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