Três jovens russas, pertencentes à banda punk "Pussy Riot", cantaram uma "oração" num templo de Moscovo, criticando a aliança entre o poder estabelecido e a Igreja russa. As jovens dirigiram o seu protesto, em especial, contra o Presidente Vladimir Putin e contra o Cardeal Kiril, líder ortodoxo que apelou ao voto no presidente nas eleições de Março passado.
As três jovens – de 29, 24 e 22 anos de idade – estão a ser julgadas em Moscovo e o Ministério Público pediu que fossem condenadas a três anos de prisão por atos de vandalismo provocados por ódio religioso. Neste domínio, o Código Penal português prevê crimes de ultraje por motivo de crença religiosa e a ato de culto, puníveis com prisão até um ano.
Perante este julgamento, tem todo o sentido colocar o problema de saber até que ponto a liberdade de expressão pode ser limitada para proteger sentimentos religiosos. Na perspetiva do Estado de Direito democrático, a liberdade de expressão não deve ser coartada, à partida, por sentimentos religiosos e muito menos ainda por sentimentos políticos.
A liberdade de expressão é um corolário da essencial dignidade dos seres humanos e constitui um instrumento da democracia, pois permite, pela controvérsia que gera, formar uma opinião esclarecida. A liberdade religiosa permite a máxima expressão da identidade cultural e também é, nesse sentido,essencial para preservar a dignidade de cada pessoa.
Quando haja conflito, que liberdade prevalece? Na tradição portuguesa, já revelada no pensamento iluminista de Melo Freire, no século XIX, a tutelapenal dos sentimentos religiosos só se justificaria para garantir a coesão dasociedade. Já a tradição protestante manteve a incriminação da blasfémia até há poucos anos, em países tão liberais como a Dinamarca.
À luz dos parâmetros do Estado de Direito (da "rule of law" anglo-saxónica), concluímos que a liberdade religiosa, em paralelo com a liberdade de ser laico, merece tutela enquanto fator de desenvolvimento pessoal. Para se sobrepor à liberdade de expressão, tem de ser condição da dignidade pessoal, como sucede no caso do incitamento ao ódio e à violência.
No caso russo, nada indica que estejamos perante uma ofensa desse tipo, mas antes em face de uma crítica político-religiosa irreverente. A ofensa a sentimentos religiosos, a ter existido, não provocou um dano social objetivo nem afetou o desenvolvimento da personalidade dos crentes. Sendo assim, a uma Justiça democrática só restará absolver as jovens.
Por:Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal, a quem, com a devida vénia, se agradece.Foi também publicado no "Correio da Manhã"
2 comentários:
Basicamente de acordo quanto à substancia, confesso algumas contradições intimas quanto aos detalhes do acontecimento a que se refere. Então as senhoras não arranjavam outro sitio para ir exprimir a sua liberdade?! Dizia um conterraneo delas, o Senhor Soljenitsin, dizia que as fronteiras da liberdade se desenham com a auto-limitação. Ou seja, há muitas situações em que um pouco de bom senso ajudava a alargar o campo da liberdade. O que não foi manifestamente o caso deste episodio e de outros como a publicação de caricaturas pouco abonatórios do Profecta Maomé.
Manuel Rocha
Caro Manuel Rocha,
Compreendo a S/ prudência, embora, como reconhece, a substância do tema abordado pela Professora Fernanda Palma é bem outra.
Agora se o poder constituído reprime, discrimina e manipula com o apoio de clérigos ortodoxos, creio que não se poderá queixar de ações que se norteiam pelo recorte da insubordinação...e é manifesto exagero reclamar uma pena desproporcionada com as atitudes assumidas....
Claro que sempre sem prejuízo pelas S/ opiniões...
Volte sempre,cumprimentos,
Osvaldo Castro
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