Quinhentas e sete crianças da Casa Pia, dos 8 aos 10 anos, foram submetidas a experiências médicas, entre 1997 e 2007, num estudo que avaliou os efeitos de uma amálgama dentária de mercúrio. O estudo, pago pelo Governo norte-americano, foi feito pela Universidade de Washington com a colaboração da Faculdade de Medicina Dentária de Lisboa.
Para justificar o estudo, os envolvidos garantiram que ele não provocou "efeitos adversos para a saúde" e que "as crianças foram tratadas de graça com o mesmo material que seria utilizado se fossem a outro dentista". Porém, uma organização sustenta que o vapor de mercúrio libertado na boca é nocivo e apresentou uma queixa no Tribunal Penal de Haia.
Só a Ciência Médica pode esclarecer se a substância usada nos tratamentos – ao que se diz, de uso corrente – é ou não nociva. Mas foram as dúvidas e não as certezas que levaram à realização da própria experiência e resta saber se não foram também essas dúvidas que ditaram a escolha de Portugal como campo de ensaios, o que seria muito grave.
A Lei nº 46/2004 requer que os ensaios clínicos respeitem a dignidade da pessoa e os seus direitos, que prevalecem sempre sobre os interesses da ciência e da sociedade. Por outro lado, faz depender a realização dos ensaios de uma ponderação que conclua que os potenciais benefícios individuais para os participantes superam os previsíveis riscos e inconvenientes.
Exige-se ainda o consentimento livre, esclarecido e expresso da pessoa, que deve ser informada sobre a natureza, o alcance, as consequências e os riscos do ensaio. Tratando-se de menor, o consentimento é prestado pelo representante legal mas tem de refletir a vontade presumível do representado, que também deve ser informado sobre as caraterísticas do ensaio.
A realização de ensaios que não respeitem os requisitos legais implica responsabilidade civil, disciplinar e penal. A Lei nº 46/2004 comina coimas de 5000 a 500 000 € para os infratores, sem excluir a sua responsabilidade penal, que pode fundar-se na prática de crimes de violação das "regras da arte médica" ou de "intervenções e tratamentos arbitrários".
É prematuro antecipar qualquer conclusão neste caso. O consentimento terá sido prestado pelos pais e, em cem casos, pelo provedor da Casa Pia. O que nos sensibiliza é que tenham sido estas crianças – vítimas de abusos que consternaram a opinião pública, vulneráveis e com escassa capacidade de escolha – as cobaias de uma experiência patrocinada por outro país.
Professora Catedrática de Direito de Penal, a quem,com a devida vénia, se agradece. Publicado no "Correio da Manhã".
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