A circuncisão de crianças que não têm capacidade para prestar consentimento é uma ofensa corporal? Há razões culturais e religiosas que a justifiquem? Eis as questões suscitadas pela decisão do Tribunal de Colónia que apreciou o caso do menino de quatro anos, oriundo de uma família muçulmana, ao qual a circuncisão provocou complicações clínicas.
O tribunal alemão entendeu que aliberdade religiosa dos pais não se sobrepõe à integridade física da criança nem serve para determinar o seuverdadeiro interesse. Mas o médicoque efetuou a intervenção cirúrgica foidesculpado e absolvido por ter agido sem consciência da ilicitude, ou seja, por pensar que a sua conduta não era proibida ou estava justificada.
À luz do Código Penal português, qualquer agressão que incida sobre o corpo ou a saúde é um crime. Contudo, não se considera ofensa corporal a intervenção médico-cirúrgica realizada com finalidade curativa e de acordo com as leis da medicina. Nesse caso, apenas poderá verificar-se um crime contra a liberdade, se o doente não consentir.
A doutrina jurídica reconhece ainda que há comportamentos aceites segundo critérios de adequação social (como a luta desportiva), que caem fora do âmbito da incriminação. Por fim, as ofensas consentidas por maiores de 16 anos são justificadas se não contrariarem os "bons costumes" – se, por exemplo, não causarem danos graves ou violarem a dignidade da pessoa.
A excisão praticada contra mulheres por razões "culturais" não está excluída das ofensas corporais. Apenas se pode questionar, em alguns casos (e com um sentido muito restritivo, sob pena de legitimar uma conduta altamente condenável), se quem a pratica tem consciência da proibição, o que permitirá discutir, porventura, a existência ou ausência de culpa.
No caso da circuncisão de menores sem idade para consentir, o problema é diferente? Adiferença para oDireito pode residir nos efeitos ao nível de integridade do corpo, saúde, funções orgânicas e dignidade da pessoa. Nesse sentido, o parlamento alemão irá apreciar uma lei que autorize tal prática respondendo a apelos das comunidades judaica e muçulmana.
No caso da excisão, nem os argumentos culturais, que implicam a diminuição da mulher, nem as consequências incapacitantes autorizam a justificação. A circuncisão tem um significado diferente e não suscita dúvidas quando praticada em adultos. Porém, tratando-se de crianças, haverá argumentos decisivos para desvalorizar os riscos para a integridade física?
Por:Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal, a quem, com a devida vénia, se agradece.Foi também publicado no "Correio da Manhã".
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